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quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Edição 411 de Carta Capital


VIDA NA
VÁRZEA
por Phydia de Athayde

Cada vez mais distante da região central, o futebol amador floresce na periferia paulistana. Lá, é retrato de um mundo com códigos próprios, à margem do “progresso”

“Por gentileza. Me mandou para aquele lugar, o senhor não vai ficar em campo, não.”

Com o sangue ainda quente, mas sem dizer mais nenhuma palavra, Miltinho, um negro forte, baixo e meio atarracado, deixa a lateral do campo. Sem pressa, arrasta seu conjunto de agasalho tamanho GG. Nas costas, um escudo idêntico ao do Botafogo, do Rio de Janeiro, onde se lê: “Botafogo do Jaçanã. Futebol e Samba. A voz da zona norte”. Miltinho desaparece em meio à pequena multidão agarrada no alambrado. Dali para a frente, seu time seguirá sem técnico. Momentos antes, uma dividida entre o goleiro adversário e o atacante do seu time o havia levado não só a invadir o campo, como a peitar os adversários e a dirigir, ao juiz, as tais palavras que lhe custaram a expulsão.

Segue o jogo. Periferia da zona leste de São Paulo. É 7 de Setembro, tradição para os times de várzea promoverem seus festivais, em que jogam com equipes convidadas de outros lugares da cidade. Para a auto-aclamada “elite da várzea”, o 7 de Setembro marca o início da Copa dos Campeões, uma espécie de Champions League da periferia, apenas para equipes que já venceram a Copa Metropolitana ou a Copa Kaiser, duas das competições mais importantes do futebol amador na cidade.

O jogo em que Miltinho acaba de ser expulso é o segundo da Copa dos Campeões de 2006. No mesmo dia, mais dois jogos acontecerão no campo do Botafogo de Guaianases, localizado ao lado do Centro Educacional Unificado Jambeiro, da prefeitura. Dentro do alambrado, os limites do campo são marcados com cal na terra vermelha. Os bancos de reserva são de alvenaria, cobertos, e há uma mesinha plástica com duas cadeiras e guarda-sol para os responsáveis pela súmula. Poucos metros ao lado do campo, em uma vala revestida de concreto escorre água cinzenta, é o córrego Guaianases. Pelo menos cinco vezes por jogo a trajetória da bola produz um splash nesse caldo cinza. Quando isso acontece, dois garotos tratam de resgatar a redonda e trazê-la, na ponta dos dedos, até um ponto em que consigam chutá-la de volta ao campo. Do outro lado do córrego está a Favela Jardim Moreno.

Quase 2 da tarde e o Cruz Credo (de Vila Formosa) já fez 1 a 0 no Santa Amélia (de Santo Amaro). Os Leões da Geolândia (de Vila Medeiros) perdem de 1 a 0 para o Botafogo (do Jaçanã). A seguir, jogam Água Santa (de Diadema) e Ajax (de Vila Rica). No último confronto do dia, o Botafogo (esse, de Guaianases), recebe o 100 Mizéria (do Parque Guarani).

Os nomes das vilas e bairros de onde vêm esses times podem soar estranho para quem não conhece os extremos da cidade. É que o futebol de várzea, hoje, está bem longe das margens dos rios Pinheiros, Tietê, Pacaembu e Tamanduateí, onde ele nasceu e ganhou esse nome. (Leia abaixo o texto de Luiz Gonzaga Belluzzo).

Enquanto a bola rola na periferia, o clima é de tristeza e revolta no último reduto de futebol amador próximo ao centro da cidade. Literalmente na várzea, mais especificamente à beira do rio Pinheiros, na altura da ponte Cidade Jardim, fica o Parque do Povo. A primeira das oito agremiações esportivas a se instalar foi o Marítimo Futebol Clube, fundado em 1928.

Em 1995, o parque, que está em um terreno da Caixa Econômica Federal e do INSS, foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Em agosto deste ano, a prefeitura de São Paulo conseguiu a concessão da área, de 111.654 metros quadrados e seus tratores já arrancaram traves e esburacaram campos. Vestiários e bares estão lacrados. Os diretores dos times, de luto.

O local abriga um circo, o Escola Picadeiro, que luta na Justiça para não ser removido, e o teatro Vento Forte, que passará a realizar projetos sociais com a prefeitura. Ali também cresceu, desordenadamente, uma pequena favela, hoje com mais de cem famílias. A prefeitura quer removê-las e oferece 5 mil reais de indenização por casa. A presidente da associação de moradores, Maria Nilda Silva, ali há 27 anos, não se considera invasora:

– Como é que só agora viram isso? Eu não tenho pra onde ir. Vou pra onde?

Estava marcado para a segunda-feira 18, o “Grito do Parque”, uma ação em protesto contra a remoção, com uma passeata ao redor do parque, shows de rap e presença de representantes do hip-hop, do MST e de outras entidades sociais.

A assessoria de imprensa da Secretaria de Coordenação das Subprefeituras defende o que julga ser a revitalização da área: “Há muito tempo fazia-se uso privado de uma área pública”. A assessoria diz que a prefeitura não tem nada contra o futebol de várzea e que ofereceu espaço em outros bairros para duas agremiações, os tradicionais Clube do Mé e Canto do Rio. Também diz que apenas um campo de futebol será mantido e explica a visão da prefeitura: “A melhor forma de aproveitarmos a área é fazendo um belíssimo parque e com os campos não caberia o parque. Tudo será discutido com o Condephaat em momento oportuno”.

O antropólogo José Guilherme Magnani realizou alguns dos estudos que culminaram no tombamento da área. Ele vê uma incoerência:

– Não se revoga um tombamento. A disposição física do espaço também foi tombada. Deveria ser mantido o uso original e o acesso público ao parque, mas isso é muito mais difícil. É bem mais fácil chegar e destruir.

Antônio Costa, o “Bacalhau”, preside o Grêmio Esportivo União Vila Olímpia, um dos times sediados no parque. À beira do que restou do campo, ele abre as portas de um escritório, lacrado desde janeiro, data da primeira interdição da prefeitura. Em uma parede, cupins devoram um mapa do local. Em outra, um painel ainda sustenta dezenas de fotos desbotadas. Um escudo do seu time. Uma flâmula do Marítimo. Bacalhau reluta, mas parece prever um atropelamento:

– Nos chamam de invasores, dizem que destruímos o meio ambiente, que explorávamos um estacionamento, é mentira! Nós plantamos as árvores que separam os campos, fizemos o paisagismo. E tínhamos uma filosofia: quem pode paga, e quem não pode também joga.

Bacalhau diz ter uma liminar que proíbe a destruição das instalações do time. Outros três teriam documento semelhante. Ao lado do velho escritório, ele destranca a porta de um vestiário, que cheira a poeira e mofo. Dentro de sacos plásticos ainda há jogos de camisas e calções:

– Quem vai usar isso? Quem? ...Vai ficar aqui até o dia em que enterrarem tudo. Se eu estivesse no Capão Redondo ou no Grajaú (bairros da periferia da cidade), onde moro, eu nem seria lembrado. Mas estou aqui no Itaim Bibi e o preço do metro quadrado chamou a atenção.

A mais de 30 quilômetros dali, as camisas e calções do Ajax, de Vila Rica, estão em pleno uso. Absorvem muito suor e poeira no jogo contra o Água Santa, adversário que veio de Diadema, vizinha da capital paulista. A torcida do time paulistano colocou no alambrado uma enorme faixa amarela: “Ajax – futebol e samba – o lobão da zona leste”, com a figura de um Lobo Mau fumando. Esse é o terceiro jogo da Copa dos Campeões. O público aumenta a cada partida. Alguns garotos se aproximam de um jogador que está no banco de reservas. Sorriem, cumprimentam-no, fazem piadas. Adriano Maximo de Oliveira, de 24 anos, o “Tilico”, é conhecido na várzea. Atacante razoavelmente bem-sucedido, é convidado para jogar e já defendeu quase dez times diferentes. Nos dias úteis, é torneiro mecânico e ganha 500 reais por mês. Na várzea, tira uns 80 por jogo. Se for uma final, e se fizer um gol, pode levar 200 para casa. Hoje, Tilico é Ajax:

– O que gosto na várzea é a amizade. Todo mundo aqui já jogou comigo, contra ou junto. Depois dos jogos, tem festa, samba. E ainda volto para casa com algum.

A rotina de Tilico não é diferente da de muitos outros jogadores. Há exatos 17 anos, um talentoso meio-campo da zona leste também recebia um extra para jogar em outros times da várzea. Esse jogador é Zé Roberto, destaque brasileiro na Copa do Mundo da Alemanha, ex-Bayern de Munique, recém-contratado pelo Santos. Da concentração, na Vila Belmiro, Zé Roberto relembra à reportagem os seus 15 anos, os tempos de várzea:

– No Monte Belo, da minha rua, eu jogava na amizade. Como me destacava, os diretores do Beira Rio iam me buscar e me davam uma graninha, pra mistura lá em casa. O time ia de caminhão, na volta eu bebia refrigerante e comia aqueles ovos cozidos e uma coxinha, o meu almoço. Quando a gente ganhava festival, torneio, os diretores ficavam contentes e pagavam tudo. Era o dia que eu mais comia. Foram tempos difíceis, mas hoje sinto falta da liberdade, da descontração, daquele círculo de amizades.

Gratificar um atleta para que jogue neste ou naquele time ou por fazer gols em uma final é prática freqüente na várzea. Não só aí, mas em diversos outros aspectos o futebol de várzea trafega com desenvoltura entre o mundo formal e o informal.

O sociólogo Daniel Veloso Hirata pesquisou durante quatro anos a várzea paulistana e defendeu uma tese de mestrado na USP sobre o tema. Parte do trabalho será publicada no livro Nas Tramas da Cidade (Editora Humanitas), prestes a ser lançado. Ele analisou as práticas sociais e a disputa pelo espaço na cidade:

– Apesar de o futebol de várzea não estar imune ao contexto violento das periferias paulistanas, os times ainda circulam intensamente pela cidade e isso articula uma rede de trocas importante da sociabilidade popular.

Mesmo turva como a risca de cal que marca os limites do campo, a linha que define o que é certo e o que é errado nas relações da várzea é conhecida e respeitada por todos. Hirata escreve sobre a tríade Lealdade, Humildade e Procedimento (LHP), que definiria esse código: “O LHP já faz parte de uma gramática comum entre os times de várzea, jogadores, diretores e torcedores, mas também entre perueiros, fiscais, ladrões, traficantes e todos os que transitam nessa zona de indiferenciação entre o legal e o ilegal, entre o formal e o informal. Todos respeitam esse mesmo código, falam a mesma linguagem. (...) Atravessam transversalmente a atuação do Estado: equipamentos públicos e serviços, fiscalização e polícia”.

Nesse universo regido por códigos próprios, é sabido que há times sustentados por traficantes e criminosos locais. Bancar um time é sinal de poder e influência. Também há equipes patrocinadas por comerciantes e, ainda, outras que dependem dos próprios jogadores.

Uma característica marcante da Copa Metropolitana, da Copa Kaiser e da Copa dos Campeões é o extremo rigor de seus regulamentos. Todos os incidentes têm julgamento sumário, sem apelação. Times são punidos pelas atitudes das suas torcidas. Uma agressão ao juiz, por exemplo, elimina imediatamente a equipe. O porte de arma de fogo, seja por integrantes do time, seja pelos da torcida, elimina a equipe e a suspende por dois ou três anos. Esse rigor tenta colocar os times em condição de igualdade. Hoje, a conquista desses torneios confere um enorme prestígio ao vencedor: o reconhecimento da várzea.

Pendurados no alambrado do campo do Botafogo quase só há homens. Meninos, jovens e velhos. Há diferenças vantajosas entre o futebol profissional e o de várzea. Não precisam pagar ingresso, instrumentos de percussão são permitidos e a cerveja também. Bebem latinhas de Nova Schin, de Brahma e, alguns, da patrocinadora Kaiser.

Outra diferença está na qualidade, pior, do futebol jogado no terrão comparado ao dos gramados verdejantes. Mas também é verdade que na várzea não cabe jogador mascarado, de corpo mole. Quem está em campo quer jogar, corre em todas as bolas e sempre procura o gol, mesmo que não o encontre. No alambrado, torcedores:

– Queira sim, queira não, várzea tem que ter um centroavante nato.

– É, se ficar só nesse toquinho de bola não vai dar nada.
– Mas pelo menos tem isso aqui. Ficar em casa é que é mó paranóia.

– Aê, ladrão! Roubou a bola direitinho, hein?

– Bola pro mato! Bola pro mato! Cabô, juizão! Cabô, juizão!

Já são quase 4 da tarde. O Ajax de Tilico perdeu de 2 a 0 para o Água Santa. É hora do último jogo. Conforme a tradição, o mais importante do dia. Perto de 500 pessoas estão prontas para um clássico: 100 Mizéria, do Parque Guarani, contra o Botafogo, de Guaianases. Como é marca registrada nos jogos do Botafogo, uma longa sessão de fogos anuncia o início da partida. Rojões serão lançados todo o tempo, independentemente de haver gols ou lances preciosos.

Na faixa estendida pela torcida do 100 Mizéria: “Se não tá com nóis, é contra nóis – Futebol e samba – Humildade, Dignidade, Proceder”. Bem atrás do banco de reservas do time, ficam os torcedores ocupados em falar, incessantemente, com Miguel, o técnico:

– Ô, Miguel, ô, Miguel! Tira um atacante e põe um volante! Tá sem meio, tá sem meio!

– Ô, Miguel, o mesmo problema aí ó, ó!

– Pera aí que eu vou consertar – responde o técnico. Miguel tem um quê de Vanderlei Luxemburgo. Cabelo com gel, relógio, camisa de seda azul, sapato de couro, jeans e óculos escuros presos à calça. Não perde a oportunidade de elogiar o bandeira:

– Acertou, professor, acertou.

O jogo vira 1 a 0 para o 100 Mizéria. No segundo tempo, a muito custo, o Botafogo empata. Um a um. Fogos, batucada, gritos de torcida. Alguns torcedores do 100 Mizéria chegam a escalar o alambrado para xingar o juiz. Sem agressão física, apenas promessas de torcedor enfurecido. O trio de árbitros espera que eles dispersem, puxados pelos próprios amigos, para deixar o campo. Usarão vestiários colados aos dos jogadores.

Do lado de fora, a tensão do final da partida logo se dissipa. O clima é de camaradagem. Há muitos agasalhos de outros times, que jogarão nos outros dias da Copa: Mella Pé, Boa Esperança, Vida Loka, Moleque Travesso, Ipanema e Mac (Maior Alegria da Cohab), entre outros.

Gozação com os perdedores, risadas, apertos de mão e muita combinação para outros jogos em festivais. O time XI Garotos joga a Copa dos Campeões no domingo 10, mas, no sábado, promove um festival em seu campo, em Ermelino Matarazzo. Outro extremo da zona leste.

O campo do XI Garotos consegue ser mais empoeirado que o do Botafogo. Sobre um córrego poluído passa a pontezinha de madeira que leva aos vestiários, ao bar e ao campo propriamente dito. É sábado à tarde. Aqui não tem patrocínio da Kaiser. Bebe-se Brahma de garrafa. O clima é ameno, há uma brisa de lazer. Manoel Francisco da Silva, o “Bill”, é o mais agitado. Recebe os convidados, arruma a chave do vestiário, não larga do celular.

Bill é filho do fundador e vive para o XI Garotos. O time já chegou a ser banido de competições e uma época quase acabou. Hoje, está na elite da várzea, graças à dedicação de Bill e à habilidade de José Pereira de Souza, o seu braço direito. Pereira é um feirante com vocação para a mediação. Ele presidiu a Associação Desportiva dos Feirantes de São Paulo e rodou a cidade inteira organizando jogos de várzea durante anos. Transita com naturalidade na intrincada trama de relações de poder e influência que fazem um time de várzea sobreviver. Diretor esportivo do XI Garotos, enche-se de orgulho com as conquistas do time.

Pereira lança um olhar demorado para os jogadores em campo, outro para a torcida. Sorri com franca ironia e explica a razão do sucesso:

– É que aqui todo mundo é santo!


O FUTEBOL, DA LIBERDADE AO PARAÍSO
Como histórias de pescador, corriam as lendas sobre as proezas de craques varzeanos famosos

Por Luiz Gonzaga Belluzzo

Nos anos 50 e 60, São Paulo de Piratininga transmutava-se de capital da província para metrópole. Terminou por seguir os descaminhos da megalópole cosmopolita periférica. Dizem que suas formas, feias, desconjuntadas, híbridas, são o avesso da urbanidade e do urbanismo. Deixo o julgamento para os especialistas.

Meu olhar de menino e adolescente, fanático pelo dito esporte bretão, via São Paulo como um imenso campo de futebol, interrompido por impertinentes avenidas e arranha-céus. Jogava-se futebol nas ruas, nos becos, nos terrenos baldios, nos quintais, em todos os cantos. No vale que iria receber a avenida 23 de Maio, entre a Liberdade e o Paraíso, eu assistia, nos fins de semana, sentado nos barrancos, à bola dos adultos correr solta. Nos dias úteis, a molecada cabulava aula e se juntava nos terrões que simulavam campos de futebol. Os gazeteiros ora celebravam os gols marcados, ora se estapeavam por conta de faltas controvertidas. Socos e pontapés eram desferidos com lealdade e até mesmo com amizade. Tudo acabava bem, descontadas as fraturas de crânio e de nariz.

Sábados e domingos, pela manhã ou à tarde, os craques da várzea exibiam suas habilidades nos times organizados. No Glicério, na Liberdade, no Carmo, na Mooca, no Bom Retiro, na Lapa, às margens do Pinheiros e do Tietê, no Parque da Aclimação, celebravam-se incríveis porfias entre times de todos os bairros, todos os tamanhos e reputações. Quem era do meio sabia distinguir os grandes dos pequenos nesse imenso campeonato informal. Nos anos 60, eu batia minha bolinha no modesto, mas não menos vitorioso Buscapé F.C: camisa grená, calções brancos, meias variadas. Meu maior troféu foi um hematoma na perna esquerda produzido por um tarugo de 2 metros, zagueirão da metalúrgica Lanzara, que não gostou da minha “caneta”, ou seja, da bola entre as pernas. “Não vem que não tem. Lugar de palhaço é no circo”, justificou o bate-estaca.

Os gramados, quando existiam, eram ralos, o que exigia habilidade apurada para dominar a bola, acertar o passe, fazer ou receber o lançamento. As bolas de couro, duras, pesavam toneladas quando chovia. As chuteiras eram instrumentos de tortura, tanto para o usuário quanto para o infeliz que sofria o seu impacto na canela. Os cravos de couro pregados na sola espetavam os pés do algoz e lanhavam as canelas da vítima.

Fora os torneios amadores patrocinados pela Federação Paulista e disputados entre os “grandes” da várzea, não havia contagem de pontos ganhos nem perdidos. Valiam as séries invictas, alardeadas de boca em boca, suscitando a inveja e a rivalidade, que, não raro, terminavam em pancadaria. Mas é bom que se diga: quase sempre as desavenças eram resolvidas no braço. Tiros e facadas, só em doses moderadas. Quando o pau quebrava, os visitantes, minoritários, escapavam para os caminhões, já preparados para a fuga, com o uniforme de jogo. Os trajes civis e os pertences, quando não uma parte da grana do mês, eram abandonados no vestiário ou local assemelhado.

Os temerários que aceitavam apitar os jogos sofriam os espancamentos de praxe, quando não eram expulsos por jogadores do time local, insatisfeitos com a arbitragem. Visitantes eram em geral assaltados por mediadores caseiros. Não tugiam nem mugiam. Galo no terreiro do vizinho é galinha.

As partidas e os torneios, os chamados festivais, eram combinados durante a semana. Nas escalações, estampadas nas tabuletas afixadas nos bares mais freqüentados de cada região, os nomes próprios não davam conta dos apelidos. Como histórias de pescador, corriam as lendas sobre as proezas de craques varzeanos famosos. Narrativas sobre os virtuoses de campos despelados “quase” contratados pelos times profissionais da capital. Na maioria das vezes, o peixe não era tão grande a ponto de merecer o anzol de um pescador profissional. Eram muitos os chamados, poucos os escolhidos.

Lembro de alguns que passaram do “quase” e se tornaram ídolos nos gramados do futebol oficial, com direito a nome no jornal e esperança de chegar à seleção brasileira. Julio Botelho, o Julinho, Djalma Santos, Carbone, Idário, Waldemar Carabina, Rubens, Homero.

*Matéria publicada na edição 411 de CartaCapital

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